Testemunho | Cmdt. Moreira Vicente

Comandante do Quadro de Honra dos Bombeiros Voluntários de Alcabideche


Aspirante em 1966
Em 1966, era eu Aspirante a Bombeiro no CB de Alcabideche. Com apenas 17 anos, intervi como combatente nas várias frentes de fogo (Lagoa Azul, Penha Longa, Cruz Alta, Quinta do Saldanha, Alfoz, Vale Flor, Mata da Malhada e noutros locais).

Ao fim da tarde do dia 6 fui destacado para a Lagoa Azul, tendo ficado responsável por duas moto-bombas "Escol", aí colocadas pelo meu CB para abastecimento de veículos. Curiosamente foi neste período que conheci o então Comandante do CB Lisbonenses, o hoje Tenente-Coronel França de Sousa. A nossa amizade tem perdurado aos longos dos anos. 

Estive presente, interruptamente, na Serra de Sintra desde as 13h20 do dia 6 até ao dia 13 de Setembro de 1966.

Comíamos rapidamente o pouco alimento que nos davam. Quando se podia, dormíamos um pouco na mata. Depois, voltávamos ao combate, sujos, por vezes, esgotados, mas com coragem e energia rude.

--- o ---

Com os meios actuais postos à disposição dos bombeiros (formação, epis, veículos, gps's, vias de comunicação, logística, etc.) será difícil de comparar e explicar como era o combate. Por exemplo, os veículos existentes eram de tracção 4x2, com motores a gasolina, alguns não tinham tanques de água, as bombas eram de baixa capacidade, pelo que o combate era, na sua maioria, braçal.

--- o ---

Enfrentámos dificuldades de vária ordem, apesar de conhecermos muito bem toda a serra: ventos de leste; temperaturas altíssimas; floresta muito serrada, na sua maioria, composta por pinheiros bravos; outra vegetação densa e ressequida pela estiagem; falta de acessos; barris de resina espalhados pelo perímetro.

As matas de Sintra não estavam limpas. Quer os funcionários do Estado, quer de outros proprietários não as limpavam. Por outro lado, as populações que residiam nas suas cercanias estavam proibidas de apanhar lenha e de roçar os matos, na altura, bens essenciais para as mesmas. A lenha para alimentar os fornos e fogões, e os matos para as camas dos animais.

Toda aquela realidade difícil contribuiu para o que o incêndio tivesse atingido uma dimensão imensa e originado muitas outras contrariedades, agravadas por fumos sufocantes e pela falta de água, obrigando a que a maioria do combate  fosse efectuado com material sapador, abafadores, troncos de árvores, enfim, os meios que dispúnhamos. Os veículos, volto a recordar, não tinham características para esta tipologia de incêndios, faltando ainda meios de comunicação. Quanto a equipamento, não existia o conceito de hoje em termos de protecção individual. O meu equipamento era composto por calça e camisa, cinturão de argolas com machadinha e espia de nove milímetros, capacete de metal e botas de borracha (para a chuva).

--- o ---

Como atrás referi, as condições de formação e outras não eram as de hoje, mas mesmo assim as estratégias pouco diferiam das empregues na actualidade. Eram apenas mais difíceis de implementar, porque as ferramentas hoje utilizadas, com tecnologia de ponta, em nada se comparam com as do passado. Mas, apesar dessas não tecnologias, existiam grandes estrategas e grandes combatentes, com uma real e grande particularidade: todos nós éramos só voluntários.

--- o ---

A notícia da morte dos 25 militares do RAAF foi recebida com profunda tristeza. Um enorme choque emocional! Mas, não houve receio de nos poder acontecer o mesmo. Em contrapartida, gerou-se um grande sentimento de revolta, pois nunca se devia ter consentido que aqueles homens fossem colocados naquele local, uma vez não conhecedores do terreno que pisavam. Não sabiam os perigos de um incêndio florestal, nem estavam preparados/formados para o combater. Para todos nós, combatentes daquele teatro de operações, desde aquele dia até hoje, eles foram, são e continuarão a ser uns heróis!

--- o ---

Nestes momentos, não obstante o ambiente dramático, ocorrem quase sempre situações curiosas. Para mim, a situação mais curiosa que gravo na memória, próprio da idade que tinha na altura, foi assistir às senhoras do então Movimento Nacional Feminino, no terreno, a oferecer, aos combatentes, cigarros "Definitivos" e "Provisórios" (marcas da época) e água com rodelas de limão e laranja, servida muito fresca em bilhas de barro. 

--- o ---

Ainda uma situação não menos curiosa: infelizmente, parece que - tal como nos tempos actuais - não se tiraram lições nem ilações de nada e para nada.

--- o ---

Passados 50 anos, recordo com muita saudade os grandes homens/bombeiros que me ensinaram a ser um deles, a seguir os caminhos do bem, do amor ao próximo, e a honrar o lema "Vida por Vida", grandes senhores, que dedicaram uma vida inteira à nossa causa, sem interesses materiais ou quaisquer outros… ou mordomias, simplesmente voluntários, heróis esquecidos no tempo, que eu recordo e venero a cada dia que passa. Alguns já partiram deste mundo e foram muitos, outros felizmente ainda se encontram no nosso meio.

Nos nomes destes que invoco, presto a minha homenagem e o meu agradecimento a eles e a todos os outros que combateram este verdadeiro mar de chamas:

CB Alcabideche - Chefes Manuel dos Santos e Francisco Firme, os nossos mentores, e todos os meus companheiros. Éramos vinte e quatro.

CB Cascais - Cmdt. Manuel Mira, Chefe José Frito, mais o Semedo, o Juventino, o Paixão, o João Salgado, o Magina, o Pinto, o Fernando Sequeira "Paypira", e o Manuel Raposo.

CB Estoril - Cmdt. Albertino Leitão, o Francisco Felício e o Manuel Cardoso.

CB Parede - Cmdt. Gilberto Duarte e Duarte.

CB S. Pedro de Sintra - Cmdt. Mário Lage.

CB Agualva-Cacém - Cmdt. Artur Lage.

CB Sintra - Cmdt. Edgar Soares e o 2.º Cmdt. Francisco Catalão

CB Almoçageme - Cmdt. José Alberto Caetano.

CB Colares - Adjunto de Comando Avelino Rilhas.

BSB - Chefe Carmo e o Chefe Mário de Almeida.

Guarda-Florestal de Sintra - Carreira.